Nas primeiras décadas do século passado calçar um bom sapato para um homem no auge dos 20 ou 30 anos era sinônimo de status e razão para chiliques femininos. Um homem usando um sapato minuciosamente engraxado era um partido e tanto. O cabelo engomadinho, o terno bem passado e um trabalho honesto nas indústrias da época, o algo mais para as moçoilas deixarem a vida de solteiras e encalhadas. A vida nos primevos dias do século XX podia ser resumida da seguinte forma: um homem precisava de um bom sapato; as mulheres, de um homem calçado com um bom sapato.
Os tempos mudaram. E muito.
Henry Ford e o Modelo T em 1921 |
Naqueles dias o americano Henry Ford inventou a produção em série. Pras coxias se Ford usava um bom sapato. Ford pensava a frente do seu tempo. Certa vez, eternizou: “economia, freqüentemente não tem relação com o total de dinheiro gasto, mas com a sabedoria empregada ao gastá-lo”. Era um visionário. Inteligente, esperto e fugaz. Percebeu que era mais barato e rápido produzir um modelo de automóvel padronizado.
Foi o que fez.
Acertou na mosca.
Criou o fordismo e em contrapartida tudo que conhecemos hoje em termos de produção automobilística. De acordo com o sistema fordiano de produção, o automóvel passava por uma esteira de montagem em movimento e os operários colocavam as peças. A montagem de um carro durava em média 98 minutos. Ford fez escola. Outros o imitaram. Produzir em larga escala se tornou obsessão. Ter um automóvel também. Os sapatos bem engraxados ficaram em segundo plano. Ter um carro não.
Dizer que Henry Ford, portanto, é co-responsável pelo caos que temos hoje no trânsito no gentílico Mimoso e também lá nos grandes centros urbanos como São Paulo e Brasília não é uma blasfêmia. Não fosse seu brilhante espírito empreendedor, talvez, não teríamos tantos carros trafegando por aí, abarrotando nossas ruas e transformando seus condutores em ilhotas irracionais e agressivas pensando ser piloto de Fórmula Um. Culpar o pobre Ford, a propósito, é cavar a própria sepultura. Ford não é culpado, afinal, não lhe competia trabalhar para melhorar as condições de trafego das estradas ou mesmo construí-las para que seus carros pudessem ganhar o mundo. Também não competia a ele determinar as regras para que os automóveis fossem vendidos. Ford queria vendê-los. E isto conseguiu.
O trânsito é um problema dos nossos tempos. Não dos tempos de Ford. Portanto, cabe a nós, e tão somente a nós, encontrar alternativas para amenizar o impacto de tantos automóveis trafegando ao mesmo tempo e nos mesmos horários. Se existem culpados para o caos e a desordem instauradas no trânsito daqui e de lá, estes culpados somos eu, você, o caminhoneiro, o motociclista, o vereador, o prefeito, o governador e assim por diante. Seres humanos, falhos, ditos racionais, capitalistas e individualistas. Sim, pois dentro de um automóvel, o homo sapiens como alertava já nos anos oitenta a letra dos Titãs se transforma e aí é “cada um por si e Deus contra todos”.
Certa vez escrevi que um homem bem calçado pode tudo. Poderá muito mais se dirigir um carro e este for seu. Esta é a máxima do pós modernismo. Ser proprietário de um carro veloz e moderno. Um par de sapatos simboliza (va) a emancipação masculina. Independência, poder, dinheiro e claro, mulheres. É para isso que os homens trabalham tanto. Para ter independência, poder, dinheiro e mulheres, muitas mulheres, quanto mais melhor. Mas para que essa combinação seja alcançada precisa-se irrefutavelmente de um automóvel. Se Ford estivesse entre nós, quiçá, não repetisse uma de suas frases: "obstáculos são aqueles perigos que você vê quando tira os olhos de seu objetivo."
Pois hoje, sobram obstáculos e faltam objetivos para solucionar a problemática do trânsito. A relação homem e automóvel continuará tão caliente quanto a paixão do brasileiro por futebol, pois, a vida depois da primeira década do século XXI pode ser resumida assim: um homem precisa de um carro; a mulher, bom, a mulher também.
Um comentário:
Eu sou inocente, doutor!
Não tenho carro, ando a pé e de bicicleta.
Mas eu tenho dois sapatos. Acho que eu me daria bem lá nos primeiros dias do século 20... pena que vivemos no século 21.
:-P
Gostei do texto.
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