14 de mai. de 2011

Seu Könemann ficaria orgulhoso

Willian Tanase, bisneto do "seu Könemann" ao piano. Foto: Daniel Tanase (o papai)

O motivo de aquela foto ficar guardada dentro do armário de louças, eu nunca soube. Em preto e branco, era o registro de uma orquestra que não mais existia. Os músicos vestidos com smoking empunhavam cada qual, seus respectivos instrumentos. Havia a turma do sopro – a maioria – o baterista ao centro, e meu avô, barba feita de maneira impecável e goma no cabelo, a direita do grupo com o contrabaixo (ou como ele mesmo preferia, o rabecão), instrumento no qual era especialista. Aquela imagem era o registro do que foram as grandes bandas (ou, big bands), as quais hoje em dia as novas gerações têm conhecimento apenas pelos filmes de época, que retratam as décadas de 1940 ou 1950.

Meu avô sempre foi um homem honesto, limitado pela falta de estudos, mas inteligente o suficiente para bem educar os filhos e deixar para os netos herança semelhante. Foi o maior músico que conheci. Não o melhor, o maior. Era um sujeito simples, conservador, mas de uma sabedoria gigantesca. Nunca o vi tocar nesta (da foto), nem em outra orquestra. Como músico, lembro dele pela gaita de boca e pelo baixo elétrico. Era dono de um vozeirão grave, o que, a primeira vista, poderia dar a falsa impressão se tratar de um homem rígido e até um pouco cruel. Daqueles que assustam criancinhas travessas. No caso dele, bastava um único sorriso para esta impressão ser dizimada. As bochechas rosadas como duas enormes maçãs, o olhar pequeno e a inseparável boina que usava para proteger a calvície o transformava no mais acolhedor e afetivo dos seres.

Em qualquer ambiente e com qualquer público, quando pegava na gaita de boca era sinônimo de animação. Com o passar dos anos, esses momentos se tornaram escassos, devido ao fôlego esguio que o impedia de tocar o instrumento por muito tempo. Com o arqueado contrabaixo amarelo e sem trastes, após ter conhecimento do desejo, meu e de meu irmão, de fazer música, tentou nos ensinar algumas lições básicas sobre tempo e compasso. Certa vez, para desespero de minha saudosa mãe, emprestou o dito cujo para que eu e meu irmão iniciássemos um projeto musical. Foi um desastre. Uma das cordas do arcaico instrumento arrebentou no primeiro toque. Tivemos de trocar a corda, aguentar uma das maiores broncas de todos os tempos e ainda contar o acontecido para ele.

Por todo sempre, vou repetir e repetir: "o melhor músico que conheci". Foto: Arquivo de Família
Para nossa surpresa não fomos reprimidos. Embora, vez ou outra, ele tenha se queixado que o baixo nunca mais foi o mesmo, é fato que as cordas nunca, até então, haviam sido trocadas. Estavam velhas, desgastadas e ainda assim emitindo um som único, estranho, mas que agradava os ouvidos dele. Meu avô fez o que considerou certo. Por amor. Por saber, no seu íntimo, que não conseguiria negar um pedido destes vindo de seus netos. Ele estava contente pelo interesse que desenvolvíamos pela música. Nossa paixão continuou. Tanto eu quanto meu irmão mantivemos projetos musicais, embora nenhum deles tenha agradado de um todo meu avô, que sempre sonhou ver os netos seguindo o mesmo caminho que ele, tocando em bandas de baile.

Hoje em dia, apenas meu irmão faz da música uma prioridade, uma vez ter se formado bacharel em música e ainda manter projetos musicais ativos. Entre os demais netos, a de se registrar o que sonha se tornar o sucessor de Luan Santana e as que emprestam a voz angelical para cantar nas igrejas que frequentam. O que talvez meu avô não suspeitasse, à época em que emprestou o baixo e tentou ensinar a mim e meu irmão, breves, mas pontuais lições sobre tempo e compasso, é que um de seus bisnetos, ainda que de maneira precoce, também se enveredasse com a música.

Quando o pequeno William cumprimentou a plateia e sentou em frente ao piano, trouxe novamente a lembrança do avô carinhoso e de bom coração. Os pequenos dedos do projeto de pianista aliado a sua já sagaz percepção fizeram com que ele, o pequeno, exigisse mudar o final da canção que haveria de interpretar na noite do sábado, 7 de maio. Ainda que tenha revelado, após a apresentação, ter cometido um erro, William, que também carrega o nome do bisavô, Arthur, encantou a todos, igualmente fazia o bisavô quando tocava a gaita de boca. Seu Könemann ficaria orgulhoso, disso não tenho dúvida. O traje da velha foto guardada no armário das louças e do pequeno pianista em sua primeira apresentação se assemelham, o que não é uma simples coincidência. Seu Arthur, meu avô, e bisavô de William, partiu em 21 de maio de 2005, vitimado por problemas cardíacos.

O pequeno pianista em ação. Foto: Daniel Tanase (o papai)

PS: Infelizmente, não tenho a foto citada no primeiro parágrafo digitalizada. Fico devendo essa.

10 de mai. de 2011

Uma decisão acertada


O diálogo com a vendedora de ingressos no cinema era para ser mais rápido do que acabou sendo. Demorei um pouco mais em frente à moça, pois o filme que fui assistir só tinha exibição em 3D. Para minha sorte não havia fila. Apenas eu, ela e uma decisão a tomar.


Olhei para a lista de filmes em cartaz e fiz uma nova escolha. Tinha consciência que estava arriscando meu tempo e dinheiro, mas nada me faria dispensar quase o dobro por duas horas usando um óculos desconfortável para praticamente nada.

Quando entrei na sala de projeção, não mais que 30 pessoas aguardavam o início do filme. A maioria mulheres. Senhoras. Logo a minha frente duas delas. Riam, conversavam alto e comiam pipoca doce. Uma delas arriscou contar o que sabia sobre o filme para outra. Por pouco não pedi que se calasse. Se fosse para me decepcionar preferia que acontecesse pelos meus próprios olhos.

Hal Holbrook
Água para Elefantes é um filme belíssimo. Robert Pattinson, famoso após encarnar o vampiro teen Edward Collen, em pouco tempo de atuação põe por terra qualquer preconceito que se possa carregar sobre ele.

No entanto são três outros personagens que fazem do longa-metragem tão especial. O primeiro deles, é Hal Holbrook. Este é o segundo filme que lembro com ele no elenco. O outro é o ótimo Na Natureza Selvagem. Em ambos fiquei com vontade de tê-lo como avô. Que simpatia. O segundo é Christoph Waltz, ganhador do Oscar pela atuação magnânima em Bastardos Inglórios e que, mais uma vez, atua com brilhantismo. Por fim, mas não menos importante, é a elefoa (ou elefanta) Rosie.

A história que permeia o longa vai muito além dos clichês dos filmes de romance. Baseado no livro de Sara Guen, Água Para Elefantes é uma história cativante sobre as durezas da vida circense nas primeiras décadas do século passado e uma lição para quem for assisti-lo despido de preconceitos ou com a mente aberta.

Altamente recomendável, ainda mais se no mesmo horário tiver passando um filme em 3D. 

Assista.


9 de mai. de 2011

E no fim das contas, 'só sei que nada sei'

A imagem é meramente ilustrativa e foi criada para uma campanha francesa
de combate à exclusão social


À primeira vista, tive vontade de rir. A cena, inusitada, era também engraçada, embora seja reflexo de uma realidade caótica que, indiretamente, afeta a todos nós. Sentada no meio fio da frente de um estabelecimento comercial qualquer, quase no meio do trecho de rua entre duas movimentadas avenidas e em pleno meio dia de um domingo cinzento, uma pessoa, a qual a princípio me pareceu ser uma mulher, cortava o próprio cabelo, curto e pintado numa tonalidade que pode ser traduzida como um vermelho candente.

As roupas que vestia aparentavam estar desgastadas de tanto uso. Algumas bijuterias, nas mãos, pescoço e no cabelo, ajudavam na suspeita de se tratar de uma mulher. Ao lado, um carrinho de supermercado continha o que, aparentemente, eram todos seus pertences, algumas peças de roupa, cobertores velhos e papelão. Pelo trejeito, embora não tenha tido chance de comprovar, o auto corte de cabelo pareceu contar com auxílio de um espelho, além, obviamente de uma tesoura, daquelas pequenas que as escolas exigem como parte do material escolar das crianças.

Avesso às dificuldades e circunstâncias, e ainda que não saiba bulhufas sobre qualquer procedimento profissional de um cabeleireiro, arrisco dizer que o morador (ou moradora) de rua saia-se muitíssimo bem com seu corte. Envolto em uma repentina vontade de gargalhar do que via, em segundos, fui inundado por um mar de sentimentos. De maus a bons. O primeiro deles foi pena. O número de moradores de rua, não só em Porto Alegre, mas em outras capitais brasileiras e até mesmo cidades interioranas, aumenta vertiginosamente. São pessoas esquecidas. Nada respeitadas e que vagueiam pedindo esmolas e revirando lixo. Desiludidas e sem esperança. Um problema social grave e que parece estar longe de solução.

Embora se discuta a implantação de programas de assistência para erradicação da pobreza, confesso preferir o ceticismo, pois, de boas intenções, como diz o velho ditado, o inferno está cheio. Justifico: a política é uma seara inconteste de tentativas frustradas ou mal intencionadas de se promover mudanças significativas e para o bem coletivo. Basta olhar em volta para se ter a prova. Os investimentos em qualquer área são feitos em escala muito inferior ao crescimento e desenvolvimento da população, isto, quando não acontecem crivados de escândalos, desvios de recursos e abusos de toda ordem, seja nos grandes centros urbanos, seja nas pequenas cidades do interior, onde, em partes, ainda persiste a medonha política da concentração de poder e do coronelismo.

O morador ou moradora de rua de cabelos avermelhados, se por um lado, pode ser considerado exceção, em meio a uma infinidade de outros que não se dão ao luxo de manter os cabelos alinhados, faz parte de um cenário que envergonha, ou, no mínimo, deveria envergonhar. A mim, a você, a todos nós. A razão é muito simples: não sabemos lidar com o problema. Ninguém. Da Presidente da República ao gari ou a garota de programa que bate ponto na esquina de onde o morador de rua cortava o próprio cabelo.

O brasileiro pode ser o rei do “migué”, mas é indeciso, acomodado e como a maioria dos seres humanos, individualista. Só há comoção e ondas de solidariedade em casos extraordinários como tragédias naturais, ou que envolvam um forte apelo popular e emotivo. Em relação à mendicância, pouco ou nada é feito. Em partes, devido ao fato de muitas vezes os moradores de rua viveram da forma como vivem por opção e não por falta de oportunidades como, a primeira vista, pode-se suspeitar. Em outras, porque a mudança necessária para tirar das ruas pessoas em condições sobre-humanas é muito maior que a boa vontade e os interesses daqueles que respondem pelas fatias do bolo que são distribuídas todo ano no país. Talvez, até 2014 alguma atitude emergencial seja tomada, nem que seja para varrer os moradores de rua para debaixo do tapete até que os gringos de esbaldem e o brasileiro grite a plenos pulmões: “é hexa, é hexa”.

Em questão de meia hora, passei pelo morador de rua duas vezes. Na segunda, pude tirar a prova sobre o sexo do bendito e para minha surpresa, não era uma mulher, mas sim um homem que cortava os próprios cabelos. Àquela altura o morador de rua cantava, como se ferido, apunhalado no coração. Uma melodia sertaneja que de tão medonha esqueci já quando atravessava a Avenida Farrapos. Lembrei somente de Sócrates, o filósofo e sua famosa frase: “Só sei que nada sei”. E talvez, ninguém mais saiba.

6 de mai. de 2011

Osama morreu e todos comemoraram

A morte de Osama Bin Laden não afastará do planeta a possibilidade de novos atentados terroristas, embora os Estados Unidos ‘pinte e borde’ a notícia como o fim do maior pesadelo vivido pelo país em tempos. É preciso, sob risco de engrossar um coro raso, cautela ao analisar os fatos, em especial o que representa, para o mundo, a derrocada do líder talibã. A vitória proclamada pelos americanos, arrisco, não é de todos. O alívio que sentimos, não é nosso, seu ou meu. É fabricado. Incutido no nosso imaginário, pela força descomunal que os yankes têm sobre o resto do globo. Odiamos por tabela. E o ódio é quase um parceiro da intolerância, maior causador de males e atrocidades de toda história.

Quando as torres gêmeas 'vieram abaixo', em 11 de setembro de 2001, matando centenas de pessoas, os EUA obtiveram argumento suficiente (ou, justificável) para decretar guerra ao terrorismo e ao grupo liderado por Bin Laden. Este por sua vez, foi dado como inimigo público número um do país de Homer Simpson, do fast-food e de 99,9% das tendências seguidas por praticamente todo o planeta. Entre as raras exceções, óbvio, os países islâmicos, de onde emergiu Bin Laden. Um homem frio, calculista, de origem milionária que aprendeu desde o berço a nutrir pelos EUA um ódio mortal. O homem, que em tese ousou entrar na casa dos americanos e urinar no tapete da sala de estar.

As imagens das aeronaves colidindo com as torres de concreto disseminadas a exaustão e a bisonha publicidade panfletária pós-atentado, vide, filmes (todos horríveis, diga-se), documentários, e a mais complexa ordem de teorias acerca do que ou quem teria provocado o atentado fizeram com que o mundo elegesse Bin Laden e seus conterrâneos como inimigos mortais. Em resumo: ao pisar no calcanhar dos americanos, o barbudo saudita, pisou no calcanhar de todos. Foi o que se pintou. Foi o que se bordou.

O ódio, como bem queriam os filhos da ‘terra dos bravos’, se alastrou. Com o orgulho ferido, os americanos não pouparam recursos para impor suas vontades nos países de origem islâmica. Mantiveram em atividade a campanha de revitalização do Iraque, muito embora nunca tenham encontrado as armas de destruição em massa que motivaram a invasão e a morte de Sadam, e continuaram a caça ao homem responsabilizado pelos ataques ao World Trade Center. A bandeira levantada pelos EUA para fazer valer sua implacável força, bélica e política, no Iraque e na caça à Bin Laden, curiosamente, traduziu-se, na simples e perseguida, desde os tempos imemoriais, palavrinha quase mágica, mas tão longe de ser consenso entre os povos: PAZ. Em nome de uma camuflada ‘paz’ foi que os americanos agiram.

Travestidos de bons moços, os americanos fizeram e desfizeram sem que nada ou ninguém tivesse chance de questioná-los. Aliás, não tem. Os EUA são os donos do mundo. Ainda nos anos 80, no governo de Ronald Reagan, lapidaram o inimigo como artesões que esculpem diamante e financiaram, entre aspas, o terror que tanto lhes tirou o sono desde a manhã daquele fatídico 11 de setembro. No entanto, matar Bin Laden, dez anos depois, soa muito mais como um incremento à futura campanha de reeleição do presidente Barack Obama que propriamente com o fim de todo mal como se tem alardeado. Era questão de honra. Uma promessa que se cumpre.

A Al-Qaeda virou franquia, escreveu, acertadamente o jornalista Janer Cristaldo. Não se diluirá com a morte de seu mentor. Haverá retaliação. “A vendeta virá com força. Nas próximas semanas e meses, podemos esperar algumas dezenas ou talvez centenas de cadáveres na Europa. O terrorismo não vencerá as democracias ocidentais. Mas ainda matará muita gente”, continua Janer, em texto publicado em seu blog na manhã de terça-feira, 3 de maio, dois dias após o anúncio da morte de Osama. O mais triste é que mesmo com a possibilidade real de mais sangue inocente ser derramado, é provável que os EUA mantenham seu nariz empinado, dando aulas gratuitas de arrogância e prepotência. “A justiça foi feita”, disse Obama quando do anúncio oficial da morte do terrorista.

O mundo aplaudiu e como de praxe tende a se curvar ante a supremacia estadunidense. O bem e o mal são inseparáveis. Os EUA vendem os valores seguidos pela maioria. Em tese, são eles quem determinam o que é ou não bom. Comida, filmes, seriados, roupas, música, espetáculos, shows, idioma, e inimigos. E os inimigos deles, querendo, ou não, se tornam os nossos. Osama morreu e todos comemoraram.