A imagem é meramente ilustrativa e foi criada para uma campanha francesa de combate à exclusão social |
À primeira vista, tive vontade de rir. A cena, inusitada, era também engraçada, embora seja reflexo de uma realidade caótica que, indiretamente, afeta a todos nós. Sentada no meio fio da frente de um estabelecimento comercial qualquer, quase no meio do trecho de rua entre duas movimentadas avenidas e em pleno meio dia de um domingo cinzento, uma pessoa, a qual a princípio me pareceu ser uma mulher, cortava o próprio cabelo, curto e pintado numa tonalidade que pode ser traduzida como um vermelho candente.
As roupas que vestia aparentavam estar desgastadas de tanto uso. Algumas bijuterias, nas mãos, pescoço e no cabelo, ajudavam na suspeita de se tratar de uma mulher. Ao lado, um carrinho de supermercado continha o que, aparentemente, eram todos seus pertences, algumas peças de roupa, cobertores velhos e papelão. Pelo trejeito, embora não tenha tido chance de comprovar, o auto corte de cabelo pareceu contar com auxílio de um espelho, além, obviamente de uma tesoura, daquelas pequenas que as escolas exigem como parte do material escolar das crianças.
Avesso às dificuldades e circunstâncias, e ainda que não saiba bulhufas sobre qualquer procedimento profissional de um cabeleireiro, arrisco dizer que o morador (ou moradora) de rua saia-se muitíssimo bem com seu corte. Envolto em uma repentina vontade de gargalhar do que via, em segundos, fui inundado por um mar de sentimentos. De maus a bons. O primeiro deles foi pena. O número de moradores de rua, não só em Porto Alegre, mas em outras capitais brasileiras e até mesmo cidades interioranas, aumenta vertiginosamente. São pessoas esquecidas. Nada respeitadas e que vagueiam pedindo esmolas e revirando lixo. Desiludidas e sem esperança. Um problema social grave e que parece estar longe de solução.
Embora se discuta a implantação de programas de assistência para erradicação da pobreza, confesso preferir o ceticismo, pois, de boas intenções, como diz o velho ditado, o inferno está cheio. Justifico: a política é uma seara inconteste de tentativas frustradas ou mal intencionadas de se promover mudanças significativas e para o bem coletivo. Basta olhar em volta para se ter a prova. Os investimentos em qualquer área são feitos em escala muito inferior ao crescimento e desenvolvimento da população, isto, quando não acontecem crivados de escândalos, desvios de recursos e abusos de toda ordem, seja nos grandes centros urbanos, seja nas pequenas cidades do interior, onde, em partes, ainda persiste a medonha política da concentração de poder e do coronelismo.
O morador ou moradora de rua de cabelos avermelhados, se por um lado, pode ser considerado exceção, em meio a uma infinidade de outros que não se dão ao luxo de manter os cabelos alinhados, faz parte de um cenário que envergonha, ou, no mínimo, deveria envergonhar. A mim, a você, a todos nós. A razão é muito simples: não sabemos lidar com o problema. Ninguém. Da Presidente da República ao gari ou a garota de programa que bate ponto na esquina de onde o morador de rua cortava o próprio cabelo.
O brasileiro pode ser o rei do “migué”, mas é indeciso, acomodado e como a maioria dos seres humanos, individualista. Só há comoção e ondas de solidariedade em casos extraordinários como tragédias naturais, ou que envolvam um forte apelo popular e emotivo. Em relação à mendicância, pouco ou nada é feito. Em partes, devido ao fato de muitas vezes os moradores de rua viveram da forma como vivem por opção e não por falta de oportunidades como, a primeira vista, pode-se suspeitar. Em outras, porque a mudança necessária para tirar das ruas pessoas em condições sobre-humanas é muito maior que a boa vontade e os interesses daqueles que respondem pelas fatias do bolo que são distribuídas todo ano no país. Talvez, até 2014 alguma atitude emergencial seja tomada, nem que seja para varrer os moradores de rua para debaixo do tapete até que os gringos de esbaldem e o brasileiro grite a plenos pulmões: “é hexa, é hexa”.
Em questão de meia hora, passei pelo morador de rua duas vezes. Na segunda, pude tirar a prova sobre o sexo do bendito e para minha surpresa, não era uma mulher, mas sim um homem que cortava os próprios cabelos. Àquela altura o morador de rua cantava, como se ferido, apunhalado no coração. Uma melodia sertaneja que de tão medonha esqueci já quando atravessava a Avenida Farrapos. Lembrei somente de Sócrates, o filósofo e sua famosa frase: “Só sei que nada sei”. E talvez, ninguém mais saiba.
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