A última noite em Porto Alegre foi de pouco descanso. Como se por passe de mágica, não havia sono. Nem a vontade de cerrar os olhos e, como qualquer pessoa normal, dormir, foi suficiente. Em poucas horas seria apenas eu e um avião. E então, e só então, algumas longas e intermináveis horas muito, muito acima do solo. Voando, entre nuvens e seja mais o que. Como se qualquer outro tripulante inexistisse. Como se voar pelos céus fosse o meio de transporte mais perigoso. E como se a qualquer momento o avião pudesse apontar seu bico para baixo e começasse a cair e cair e cair. Sem volta.
O sol ainda rolava de um lado a outro em sua cama aquecida. O clarear do dia era tímido. O assento, o último possível na aeronave. Eu e mais ninguém. A primeira providência: cerrar todas as janelas próximas. Não queria ouvir. Não queria ver. Queria simplesmente ter o poder de acelerar o tempo e chegar ao meu destino mais rápido. A segunda providência: ler. Ou tentar. Por pouco não proferir as palavras descritas no livro em voz alta. Para fugir. Escapar dos tremeliques daquele monstro aéreo. Da sensação desprezível de sentir-se um fraco enquanto todos a sua volta escancaram suas faces pela janela e observam a imensidão azul e os pontinhos miúdos das cidades, dos campos e dos mares.
E lia. O velho Buk. O velho safado. Escolhido a dedo. Charles Bukowski. “Um problema que eu enfrentava era ir ao banheiro. Estava sempre apertado, mas tinha vergonha de deixar os outros saberem da minha necessidade”. Nada mais peculiar. E sim, pessoas levantavam-se como se nada estivesse acontecendo e iam ao banheiro da aeronave. Continuava a ler quase sem conseguir esconder o desespero. “Era realmente terrível conter a vontade. E o ar estava puro, e eu sentia vontade de vomitar, vontade de cagar e de mijar, mas não dizia nada”. Pelos céus. Pessoas fotografavam a imensidão. E deixavam o sol entrar. E se pudessem enfiariam suas cabeças para fora para pegar um ar fresco. E eu cada vez mais tentando não aparentar que sentia medo, muito medo e que as palavras do velho Buk eram como uma cópia fiel do que se passava.
Minhas mãos jorravam água. Agarrava-me ao cinto de segurança da poltrona – graças a Deus – vazia ao meu lado. Tentava engolir o lanche servido pelas aeromoças. Qualquer balanço ou barulho suspeito fazia meu coração saltitar dentro do peito. Ler era a única saída. A não ser que resolvesse gritar e transformar o vôo num pandemônio. Seguia com Buk. “Entrei e ele fechou a porta atrás de nós. As paredes eram brancas. Havia um espelho e uma pequena janela cuja tela estava enegrecida e quebrada. Havia a banheira, a privada e os azulejos”. Pedi um copo de água. Talvez ajudasse. Gostava de ver o trabalho de bordo. Era possível pensar: se eles caminham normalmente pela aeronave é que tudo está bem e não há o que se preocupar. E não havia, embora eu achasse que havia.
A mulher que fotografava quase sem parar duas poltronas a minha frente resolveu conversar com um dos comissários. Descobri que restavam quarenta minutos de vôo. Pensei em chorar. Só faltava chover. A conversa dos dois revelou que voávamos acima das nuvens e que sim, era possível estar chovendo abaixo delas. Tentei voltar o foco para Bukowski. “Ele pegou o amolador da navalha que estava pendurado em um gancho. Seria a primeira de uma série de surras que viriam a ocorrer com mais e mais freqüência”. Era assim que me sentia. Exatamente como se tivesse levado uma surra.
- Estamos a 35 mil pés de altura.
Havia serenidade, tranqüilidade e outros tantos “ades” possíveis na feição do comissário. Ah, como queria me sentir daquele jeito. Deixei o livro de lado e parei para pensar na segurança em se viajar de avião. Logicamente, a proporção de acidentes nas estradas é incomparável com os acidentes ocorridos no espaço aéreo do planeta. E o avião chacoalhava. E eu segurava firme com a mão direta encharcada o cinto da poltrona ao lado. Voltei para o velho Buk.
“Você sabe como aquilo acontece? – perguntou.
Aquilo o quê?
Foder.
O que é isso?
- Sua mãe tem um buraco...ele juntou o polegar e o indicador da mão direita e fez um círculo – e seu pai tem um pinto...- pegou o indicador esquerdo e começou a enfiá-lo para frente e para trás dentro do buraco...”
Uau, havia descoberto o que era sexo. Ou uma de suas tantas teorias. Estava a 35 mil pés de altitude e não havia ninguém ao meu lado para contar o que acabara de ler. Veio-me a sensação que poderia não ter para quem contar. Estava prestes a gritar. Então, o alívio. Ouvir a voz do piloto foi um deleite. O pouso se aproximava. O primeiro drama matutino chegava ao fim. Tive uma hora antes de entrar em um avião novamente. Antes de seguir para uma nova jornada pelos céus do Brasil.
A contra gosto fui transferido para outro assento. Ainda no corredor, mas com muitas pessoas a minha volta. Todas com suas respectivas janelas expostas ao sol, ao mundo, ao vazio, a imensidão do lado de fora. Não havia para onde fugir. Apenas aguardar e torcer para não borrar as calças. O cansaço me consumia. Fechei minha janela para evitar que os raios do sol invadissem o meu reduto naquele avião. Ninguém poderia me privar disso, nem mesmo um dos comissários. Mesmo que fosse uma mulher linda, com pezinhos delicados e cheirosos, morena cor de jambo e com óculos de armação. Nem, nem, nem.
Vesti meus óculos escuros e fechei os olhos. Dormir. Pensava em dormir e tinha convicção que um cochilo era providencial para que o vôo final até meu destino passasse rapidinho. Mas não tinha como dormir. Optei por não olhar para os lados e tentar manter as aparências. Nada de pânico velho marinheiro, era o que pensava. Um garoto de uns 8 anos corria pelo corredor da aeronave. Parecia feliz e tranqüilo. Senti inveja. Muita. Como conseguia? Qual era o segredo? Pensei tanto que a hora completa de vôo terminou e o pouso foi – enfim – anunciado pelo comandante do avião.
Outro drama. Como pousar em Brasília é complicado. Será que todo pouso na capital federal é tão cheio de voltas e quedas súbitas e frios na barriga. Só conseguia ouvir a voz do garotinho. “Voar de avião é melhor, não tem trânsito”. Quase gritei: bravo, bravíssimo. Cheguei a aterrorizante conclusão que devo ser o único cagão a mais de 50 metros do solo. Não teve lanche, serviço de bordo ou “misto-quente” de Bukowski que desse jeito.
Post Scriptum:
- Desta feita, sem fotos minhas. Afinal, a de se convir que num desespero desses seja impossível tirar uma câmera fotográfica pra fora da bagagem e sair fotografando tudo que se vê. Lamento.
- E também, o pânico vivido impossibilitou-me de pedir a garota que fotografava sem parar que mandasse uma de suas “lindas” imagens por e-mail.
- Por fim, está incluso alguns trechos do livro: Misto-quente de Charles Bukowski. Cortesia deste blogueiro e de fato lido durante o vôo 6100: Porto Alegre – Belo Horizonte e 6150: Belo Horizonte – Brasília, na manhã de sexta-feira, 02 de janeiro de 2009.
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