13 de fev. de 2009

Alécio e o dicionário

O dicionário que uso é enorme. Gasto e com a capa descolando das suas mais de mil páginas. Obviamente, também é pesado, como se carregasse em cada palavra ali definida o peso de todos os elefantes do mundo. Meu dicionário me lembra um colega dos tempos de colegial: o Alécio. Um tipo franzino, com poucos dentes na boca e que sempre carregava um dicionário tão pesado quanto o meu dentro da mochila.

O fato é que nunca vi o Alécio usando o tal dicionário. A propósito, durante as aulas era raro o dicionário ficar com ele. Não foram poucas as vezes que a mochila do Alécio voou janela abaixo na escola. A mochila e o dicionário. Juntos, transformados em uma arma letal caso caísse na cabeça de algum transeunte, afinal, mochila e dicionário despencavam diariamente de uma altura de três andares.

Também não recordo de ter precisado do dicionário do Alécio para sanar qualquer dúvida ortográfica ou sobre o significado de uma palavra. Nem mesmo de “nupérrimo”, como essa coluna e a edição desta semana do jornal. A bem da verdade, aquele dicionário era um objeto meramente simbólico. Mesmo destino do dicionário que uso hoje em dia: tornar-se um objeto simbólico. Suponho alias estarem ambos fadados ao ostracismo, muito embora eles (os dicionários) representem regras. De ortografia.
Pelo que consta, Monteiro Lobato foi um revolucionário da língua portuguesa. Gostava de quebrar regras ortográficas. Se ainda estivesse entre nós, pouca atenção daria ao dicionário do Alécio e ao meu. Lobato não aceitava, nos anos de 1920, uma porção de acentos utilizados em nossa língua. Roga a lenda que nos anos de 1930, um General de nome Bertold Klinger também desafiou a gramática defendendo a tese de se escrever as palavras da mesma maneira como são pronunciadas.
Ganhou fama, afinal foi autor de inúmeros volumes onde se lia “oje” (hoje), “mai” (mãe) e “ovi” (ouvir). Português chulo? Talvez, já que estes são tempos de reforma ortográfica da língua portuguesa. Mais uma, se levarmos em conta que muitos desconhecem a regrinhas básicas e apenas ensinadas nos tempos de colégio. Regras que se tornam sombras e que hoje repaginadas estão em voga unicamente pela temporalidade da medida. Conheço pessoas que nunca usaram trema na vida e não sabiam quando utilizar o para com ou sem acento.
Aos que se gabavam por conhecerem as regras e sempre coloca-las em prática, possivelmente a reforma soe como um retrocesso. Uma analfabetização talvez. Convenhamos, realmente é estranho duas palavras como linguiça (sem trema, por favor) e enguiça terem pronúncias diferentes mas possuírem a mesma forma escrita. Um dos argumentos usados para a reforma é o fortalecimento do idioma. Uma espécie de unificação dos países lusófonos, embora eles vão continuar falando “estou a escrever” enquanto nós continuaremos com o “estou escrevendo”.
O presidente da ABL – Associação Brasileira de Letras, Marcos Vilaça, engrossa o caldo dos favoráveis: “vai ser possível melhorar o intercâmbio cultural entre os países lusófonos, reduzir o custo econômico da produção de livros, facilitar a difusão bibliográfica e de novas tecnologias e ainda aproximar as nações”, explica. Concordo com o acadêmico apenas quando admite que a reforma esta longe de ser simples. O difícil vai ser convencer o dicionário do Alécio e o meu que eles são seres anacrônicos, ultrapassados, retrógrados e obsoletos. Na humilde opinião deste que vos escreve, ler Saramago continuara sendo um prazer, independente de lá se escrever “óptimo” e as tremas terem morrido.
Nota: De acordo com meu dicionário de mais de mil páginas, “nupérrimo” significa novo, recentíssimo.
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Artigo publicado para a coluna "Ponto de Vista" do Jornal Classe A de Luis Eduardo Magalhães/BA, Edição nº122 de 07 de fevereiro.

Um comentário:

Emerson Reis disse...

Realmente Lobato foi um revolucionário, ele comparava o uso dos acentos à decadência do império francês. Que quando passou a usar acentos passou a decair. Mas tem casos e casos. Veja a frase ambígua que ficou: "Obama para Guantánamo". O que significa isso? Se fosse: "Obama pára Guantánamo" não restaria dúvida, agora complicou...