Habermas: “O mundo da vida é a esfera de 'reprodução simbólica', da linguagem, das redes de significados que compõem determinada visão de mundo, sejam eles referentes aos fatos objectivos, às normas sociais ou aos conteúdos subjectivos” |
Foi
de repente. Uma pequena mão com unhas feitas e esmalte transparente me bateu
nos ombros para me entregar um bilhete. “Você tem namorada?”. O questionamento
me causou surpresa. Assistia a uma aula sobre a Escola de Frankfurt, recheada
de teorias e frases do tio Theodor Adorno. Era noite e ainda tinha de encarar
uma desgastante viagem de 90km em um ônibus nada confortável e repleto de
baderneiros.
A
responsável pelo bilhete tinha o cabelo cacheado carregado com cremes e
hidratantes. As madeixas negras estavam sempre úmidas. Usava óculos e tinha os
olhos escuros como a noite. Morena de rosto esguio, não era bonita tampouco
feia. Era comum. Nada, além disso. O maxilar um pouco alongado acentuava o
sorriso, com todos os dentes a mostra, diga-se, brancos a neve.
No
mesmo bilhete, rabisquei a resposta: “Não, por quê?”. Em instantes, o mesmo pedaço
de papel, um pouco mais amassado que do início do seu vai e vem, retornava as
minhas mãos. “Quero falar com você no intervalo”. Olhei as horas. Ainda tinha
uns 20 minutos de explanações sobre Adorno, Horkheimer e outros pensadores da comunicação
dos séculos XIX e XX.
Pensei:
-
Que diabos, essa mulher quer comigo no intervalo?
No
banco frio e cimentado do corredor da faculdade, sentamos, eu e ela, a morena
de óculos e cabelos úmidos. Ela estava nervosa. Conhecíamo-nos, se muito, há uns
dois meses. Após alguns rodeios, ela, enfim, revelou o que a agoniava tanto:
-
Eu te amo!
Corei.
Como assim me ama. Não é possível. Alguma coisa estava errada. Por pouco não
coloquei as costas da mão na testa da guria. Podia ser febre. Amor, não. Jamais.
-
Eu tenho pensando muito em você e estou certa que te amo – continuou.
Pedi
um tempo. Precisava (mos) respirar. Sabe como é. Não é todo dia que uma pessoa
diz para outra “eu te amo”. Isso não acontece com um estalar de dedos. Não fiz
nada para que aquela jovem, à época com seus 18 ou 19 anos, de uma hora para
outra, revelasse uma paixão por mim. Falei que a entendia mas que –
infelizmente (ora, precisava ser educado) – não nutria por ela o mesmo
sentimento. Logo, não havia chance alguma daquela história ir adiante.
Encerrada
a conversa fui ao encontro do melhor amigo que tinha na classe naqueles
saudosos dias. Contei a ele. Tudo. Às gargalhadas, confessou-me:
-
Relaxa meu amigo, não és o primeiro.
Como
assim. Houve outros antes de mim. Era uma várzea. A cada palavra dita, sentia
um peso saindo das costas. Estava preocupado com a garota. Não precisava. Para
minha total e absoluta surpresa, eu já era o terceiro pelo qual a morena de
rosto esguio se apaixonava desde o início do semestre. Em suma, outros dois
antes de mim, passaram pelo ritual: troca de bilhetinhos durante a aula e
conversa no banco de cimento do corredor.
Essa
história me faz lembrar a política. O quão fácil e rápido se “ama” e se vende e
se compra. O quão promíscuo e rasteiro é o ritual de troca de bilhetinhos e
conversa no banco do corredor. “Eu te amo”. Frase de bajulação. As pessoas são
carentes. Precisam ouvir esse tipo de agrado. Pena. Ama-se de mentira.
Temporadas. Momentos. Não é algo verdadeiro. Tem interesse. As urnas. O amor é
o teu voto. Eu te amo, vote em mim. Outubro. Um ano. Não é mais sem tempo.
Apaixonar-se. Palavra de ordem. Custe o que custar. A paixão é não é para
sempre. Tem prazo. Limite. Tempo determinado.
O
bilhete, assim que terminou o intervalo, foi devidamente amassado e depositado
no lixo. A conversa, em duas semanas, esquecida. A vida seguiu seu rumo. Os
amores da morena de rosto esguio a levaram a conhecer seu verdadeiro amor.
Enfim. Quem dera fosse assim também com a política. Não é. Respeito. É tudo que
se exige de quem legisla e executa. Seguimos com Habermas, “O mundo da vida é a
esfera de 'reprodução simbólica', da linguagem, das redes de significados que
compõem determinada visão de mundo, sejam eles referentes aos fatos objectivos,
às normas sociais ou aos conteúdos subjectivos”. Amém!
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