Willian Tanase, bisneto do "seu Könemann" ao piano. Foto: Daniel Tanase (o papai) |
O motivo de aquela foto ficar guardada dentro do armário de louças, eu nunca soube. Em preto e branco, era o registro de uma orquestra que não mais existia. Os músicos vestidos com smoking empunhavam cada qual, seus respectivos instrumentos. Havia a turma do sopro – a maioria – o baterista ao centro, e meu avô, barba feita de maneira impecável e goma no cabelo, a direita do grupo com o contrabaixo (ou como ele mesmo preferia, o rabecão), instrumento no qual era especialista. Aquela imagem era o registro do que foram as grandes bandas (ou, big bands), as quais hoje em dia as novas gerações têm conhecimento apenas pelos filmes de época, que retratam as décadas de 1940 ou 1950.
Meu avô sempre foi um homem honesto, limitado pela falta de estudos, mas inteligente o suficiente para bem educar os filhos e deixar para os netos herança semelhante. Foi o maior músico que conheci. Não o melhor, o maior. Era um sujeito simples, conservador, mas de uma sabedoria gigantesca. Nunca o vi tocar nesta (da foto), nem em outra orquestra. Como músico, lembro dele pela gaita de boca e pelo baixo elétrico. Era dono de um vozeirão grave, o que, a primeira vista, poderia dar a falsa impressão se tratar de um homem rígido e até um pouco cruel. Daqueles que assustam criancinhas travessas. No caso dele, bastava um único sorriso para esta impressão ser dizimada. As bochechas rosadas como duas enormes maçãs, o olhar pequeno e a inseparável boina que usava para proteger a calvície o transformava no mais acolhedor e afetivo dos seres.
Em qualquer ambiente e com qualquer público, quando pegava na gaita de boca era sinônimo de animação. Com o passar dos anos, esses momentos se tornaram escassos, devido ao fôlego esguio que o impedia de tocar o instrumento por muito tempo. Com o arqueado contrabaixo amarelo e sem trastes, após ter conhecimento do desejo, meu e de meu irmão, de fazer música, tentou nos ensinar algumas lições básicas sobre tempo e compasso. Certa vez, para desespero de minha saudosa mãe, emprestou o dito cujo para que eu e meu irmão iniciássemos um projeto musical. Foi um desastre. Uma das cordas do arcaico instrumento arrebentou no primeiro toque. Tivemos de trocar a corda, aguentar uma das maiores broncas de todos os tempos e ainda contar o acontecido para ele.
Por todo sempre, vou repetir e repetir: "o melhor músico que conheci". Foto: Arquivo de Família |
Para nossa surpresa não fomos reprimidos. Embora, vez ou outra, ele tenha se queixado que o baixo nunca mais foi o mesmo, é fato que as cordas nunca, até então, haviam sido trocadas. Estavam velhas, desgastadas e ainda assim emitindo um som único, estranho, mas que agradava os ouvidos dele. Meu avô fez o que considerou certo. Por amor. Por saber, no seu íntimo, que não conseguiria negar um pedido destes vindo de seus netos. Ele estava contente pelo interesse que desenvolvíamos pela música. Nossa paixão continuou. Tanto eu quanto meu irmão mantivemos projetos musicais, embora nenhum deles tenha agradado de um todo meu avô, que sempre sonhou ver os netos seguindo o mesmo caminho que ele, tocando em bandas de baile.
Hoje em dia, apenas meu irmão faz da música uma prioridade, uma vez ter se formado bacharel em música e ainda manter projetos musicais ativos. Entre os demais netos, a de se registrar o que sonha se tornar o sucessor de Luan Santana e as que emprestam a voz angelical para cantar nas igrejas que frequentam. O que talvez meu avô não suspeitasse, à época em que emprestou o baixo e tentou ensinar a mim e meu irmão, breves, mas pontuais lições sobre tempo e compasso, é que um de seus bisnetos, ainda que de maneira precoce, também se enveredasse com a música.
Quando o pequeno William cumprimentou a plateia e sentou em frente ao piano, trouxe novamente a lembrança do avô carinhoso e de bom coração. Os pequenos dedos do projeto de pianista aliado a sua já sagaz percepção fizeram com que ele, o pequeno, exigisse mudar o final da canção que haveria de interpretar na noite do sábado, 7 de maio. Ainda que tenha revelado, após a apresentação, ter cometido um erro, William, que também carrega o nome do bisavô, Arthur, encantou a todos, igualmente fazia o bisavô quando tocava a gaita de boca. Seu Könemann ficaria orgulhoso, disso não tenho dúvida. O traje da velha foto guardada no armário das louças e do pequeno pianista em sua primeira apresentação se assemelham, o que não é uma simples coincidência. Seu Arthur, meu avô, e bisavô de William, partiu em 21 de maio de 2005, vitimado por problemas cardíacos.
O pequeno pianista em ação. Foto: Daniel Tanase (o papai) |
PS: Infelizmente, não tenho a foto citada no primeiro parágrafo digitalizada. Fico devendo essa.